quinta-feira, 21 de outubro de 2010


Na minha perspectiva leiga, a sociedade das 'castas' não é um modelo apenas indiano.
Também na Europa, e em particular em Portugal, espera-se ainda hoje que filho de Doutor seja Doutor, como antes filho de aristocrata seria também aristocrata.

A espécie de consaguinidade das habilitações tem vindo a mudar lentamente, sendo a grande marca de mudança o investimento das famílias nos estudos dos filhos, a par da alteração do estatuto da emigração.

Porquê?

Porque o êxodo rural continua, estando a vivência da cidade maior directamente relacionada com o ingresso no ensino superior. A imigração e/ou as colónias continham o exclusivo da promessa de uma vida melhor, não através dos estudos, mas através do trabalho.

Essa promessa, de ascender a um melhor nível de vida através de um esforço e deslocação geográfica, deixou porém de pender sobre o próprio, tendo sido transferido para a sua família. Se o emigrante passava por dificuldades até se estabelecer no local de destino, para trabalhar, agora é a família que aperta o cinto - para proporcionar aos seus filhos os estudos - que os poderão elevar socio-culturalmente.

Porém, este facto traz em si um prolongamento da valorização da fortuna e da sorte, em detrimento da valorização do trabalho.

Serão muitos os jovens que têm consciência do investimento feito pelos pais? Pensarão porventura em lhes proporcionar A ELES, posteriormente, uma melhoria do nível ou qualidade de vida? Ou serão muitos os que sentem vergonha das suas origens e cortam os laços com o passado recente?

Independentemente dessa questão ética e moral, o que se valoriza é o que se vai poder obter a posteriori: os frutos que serão colhidos - não é valorizado o conhecimento adquirido - interessa sim o 'canudo' e não o esforço para o obter. Quanto maior o esforço - pior -, interessa depois o bom emprego e não o trabalho bem feito.

Estes valores reflectem-se no caso exemplar da profissão de futebolista, aspiração de muitos pais para os seus filhos, não porque seja um desejo de practicar esse desporto, eventualmente a nível profissional, mas antes espelho de uma estrutura de valores que coloca o indivíduo ao serviço da rápida acumulação de riqueza monetária. E porque os "colunáveis" são também uma espécie de nova aristocracia. Podem não ter um tostão e estar atolados em dívidas - mas são muito bem, porque 'aparecer' é valorizado positivamente. Merecer destaque ou trabalhar de forma excepcional é valorizado negativamente se não é acompanhado do destaque colunável...vulgo: "anda a trabalhar para quê???"...

Sendo o 'estudo' valorizado, já que por ter valor é que as famílias continuam a pagar propinas; a formação académica, como depois o trabalho, não o são tanto, nem correspondem ao orgulho por um bom exercício e percurso de crescimento como pessoa. Antes interessa que a geração seguinte tenha o que foi negado à primeira, um emprego na cidade, distante do esforço físico, remunerado acima de uma dada média subjectiva, a que foi vivida, e que será decerto fácil de suplantar em muitos casos...Não se dando conta de que - ironicamente, está a fazer dos seus filhos tijolos do mesmo muro de que sequer distanciar. Com a agravante de que eles não terão meios para proporcionar aos filhos deles o que lhes foi proporcionado - se ganham mais, gastam muito mais. Se acabaram o curso, conhecem quem não tenha acabado, e sabem que a relação não é directa entre formação e profissão.

O trabalho no campo contém uma conotação pejorativa, sendo associado (culturalmente) à ignorância e à falta de bens, a uma baixa qualidade e nível de vida. Viver na aldeia, mesmo com um emprego não braçal, corresponde a um desmérito, sendo talvez um espelho da sugestão de sucesso no distanciamento, em memória dos retornados (falhados) e dos que já voltaram porque já estão reformados (acabou a sua productividade).

Por outro lado, a própria família dispõe-se - mesmo contra o desejo dos filhos - a manter um filho repetente na cidade. Quando vem à aldeia pode ser tratado por engenheiro e isso basta como remuneração do esforço feito (para nada que tenha a ver com o filho, de facto).

Hoje, com o advento da sociedade da informação, as distâncias encurtaram-se.
A qualidade de vida já se consegue dissociar do nível de vida, optar pela primeira em detrimento da segunda começa a fazer mais sentido. A cidade deixou de ser o El Dorado, até porque a remuneração do trabalho, no interior, é superior, por via de regra, ao da cidade grande do litoral.

Esta discriminação positiva do trabalhador da aldeia será resultado da lei da oferta e da procura, ou será antes resultado de uma maior proximidade entre os dois lados, de uma maior humanização dos trabalhadores, que cria um maior sentido de responsabilidade e dever para com os mesmos?

E se um sentido do dever e responsabilidade humana na relação laboral porventura se perdeu, na cidade industrial, não faz sentido culpar a cidade, a indústria, ou o paradigma sócio-cultural, porque tudo isso são construções do homem - do mesmo homem que constroi as axiologias. Do mesmo homem que constroi as Igrejas. Perdeu-se porque o homem perde facilmente os seus valores humanistas quando é colocado num lado da balança o lucro monetário rápido e fácil e no outro a remuneração a dar a outro homem, mesmo que torne possível o lucro.

Essa é a crise - de valores - diagnosticada e descrita em tantas áreas do saber.
E a realidade é que não faz sentido, num plano individual, ter valores. Porque serão forçosamente vencidos pelo que terá de se fazer - mesmo não correspondendo ao que se entende que deveria ser feito.

O trabalhador, que depende do que TEM de fazer, de ordens exteriores, consagradas e institucionais, entende que não haja uma cultura da moralidade ou dos valores. Porque não é preciso. Antes pelo contrário. O Saber, de resto, obedece à mesma regra, embora seja imposta de forma mais velada.

Uma empresa, como uma sociedade espartana, faz dos seus trabalhadores um exército na caserna, isolado da família. Espera que ele faça tudo o que seja necessário sem reservas éticas e morais. E que não se saiba que viola leis. Sendo apanhado, será castigado exemplarmente. E tudo permanecerá na mesma.

Ou seja, o que é certo e o que é errado é relativo, não sendo algo a considerar reflexivamente. Não é para se pensar nisso!!!...

Em algumas empresas existem 'axiologias corporativas'. Nos postulados empresariais, nas suas secções de 'Missão e Valores' ou ´Código de Conduta' ou outras nomenclaturas que possam assumir, são estabelecidos os certos e os errados (valores). São lidos anonimamente e assinados sem consideração sobre o seu conteúdo e implicações. Não serão de facto para cumprir, muito menos para questionar, e nem pensar que venham a afectar o EXERCÍCIO do trabalho na empresa.

Ao 'salvaguardar' o TRABALHADOR / CIDADÃO dos seus próprios valores e ao pressupor-se a informação dos valores 'de fachada', favorece-se a diluição da responsabilidade, o não ser chamado a depor, o não dar o testemunho, o não dar a cara - como numa administração de condominio, em que outros, por nós, pelos nossos interesses devem zelar. Nós só teremos de julgar, anónima e levianamente, o resultado das acções dos outros e não as nossas. Isto é muito claro nos processos de despedimento colectivo. Um ou dois ou poucos mais, de entre dezenas de envolvidos, avançam com os processos e tornam-se interlocutores directos da entidade patronal, exigindo e negociando - os restantes assinam de cruz o que a empresa oferece e recostam-se a assistir, esperando recolher os beneíficios do trabalho dos outros. E infelizmente resulta.

Essa alteração deveria ser introduzida na legislação laboral, por uma questão de moralidade, e porque pouparia muito às entidades patronais. Só quem se esforçasse é que teria direito à remuneração desse esforço, como prémio pelo seu trabalho. Mas isso poderia criar o efeito perverso de tornar mais trabalhadores mais interventivos, e poderia parecer que se premeia o esforço, e isso não seria benéfico...

E então qual o VALOR do trabalho? Corresponde a um castigo bíblico?
É algo negativo, em contraponto a algo positivo como seria não TER de trabalhar?
E o objectivo do trabalho é o sustento físico? Será que o salário reflecte isso?
O salário mínimo (menos de 500€) reflecte o valor do trabalho mínimo ou o valor mínimo do trabalho?
É suposto provir do trabalho o sustento, ou é um último recurso para os desafortunados que não recebem uma comenda, que não têm direito uma reforma ao fim de menos de uma dezena de anos de trabalho, que não ganham totolotos e totobolas e afins, que porque são azarados não têm sequer na família quem lhes proporcione um tacho onde nem sequer têm de fingir que trabalham, e precisam - coitados - de trabalhar mesmo, para se sustentar?
Será que um salário mínimo baixo reforça o valor da família, que é mais importante do que o trabalho, porque torna imprescindivel juntar dois ordenados para poder fazer face às despesas de um indivíduo?
Ou serão três? Seriam necessários três para perfazer o valor de uma comenda (1.500 €)...

E acham bem as comendas? Quem as recebe - acha? E o que deveria achar????

E o fenómeno 'Santa Casa', de que forma contribui para a desvalorização do trabalho?
O objectivo dos jogadores/apostadores é continuar a trabalhar, ou passar a pertencer ao grupo dos que não precisa de trabalhar?

Trabalhar sem necessidade do ordenado, por 'desporto' ou por 'gosto', será o objectivo dos trabalhadores apostadores?

O TRABALHO não é apreciado por quem 'tem' de trabalhar, nem valorizado por quem o remunera - por isso pode ser tão mal pago.

Porque não lhe é atribuido valor.

Se o trabalho fosse valorizado, considerado importante para a construção da pessoa, e o equilibrio da pessoa fosse considerado importante para a familia e sociedade, então o trabalho seria valorizado, justificando que fosse bem remunerado.

Uma cultura da meritocracia, pelo mérito do trabalho bem feito, não pode ser conivente com uma cultura da burocracia, com a nomeação administrativa de intocáveis, com a 'cunha', com a atribuição de fundos públicos a particulares por decreto - porque sim.

Porém, essa arbitrariedade ainda vai servindo de justificação, embora criticada.
O que o comentador considera é sobretudo que o MAL é não ter nascido naquelas familias ou não ter aqueles contactos - não o critério da escolha.
Porque de outra forma seria ele o feliz contemplado. Caber-lhe-ía essa sorte.
E acredita-se muito na sorte. Sem trabalho, claro.

Por outro lado, não se pode pretender uma discussão séria ou um boicote a essas práticas, quando os ditos 'intocáveis' correspondem a alguma da aristocracia prévia, que por onde passava era reverenciada e depois pelas costas era maldita.

(O meu avô dizia que as pessoas "pensam uma coisa, dizem outra e fazem outra". Por isso é que depois os ingleses e alemães não vendem a portugueses, no e-bay. Não se pode confiar em pessoas assim...)

É a cultura da hipocrisia que torna a verdade relativa - relativa a inúmeros factores: ao interlocutor em presença, relativa ao objectivo / intuito / propósito - e faz com que os fins justifiquem os meios.

Por tudo isto, se eu quero enriquecer rapidamente e o dinheiro fácil é que é bem, e o trabalho não vale 'um caracol', é óbvio que não vou pagar salários decentes. Vou pagar o mínimo, fugir aos impostos, ficar a dever aos fornecedores, lucrar o máximo - já -. Toda a gente entende, e a maioria faria exactamente o mesmo no meu lugar...

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